quarta-feira, 17 de abril de 2013

Por Abril, Antes de Abril...

"O Meu 25 de Abril Não Foi um Dia de Festa
 
Helena Pato
 
Uma semana antes do dia da revolução, finalmente, regressámos a casa: tínhamos andado por Londres, fugidos, à espera que a situação dele se definisse. De tempos a tempos era isto.
Voltámos na convicção de que o perigo de prisão havia passado, mas, mesmo assim, no dia da chegada queimámos tudo quanto era papel que pudesse incriminar-nos. Eram tantos – ou ...a nossa minúcia tão grande – que a sanita em que decorreu a operação estalou com o calor. Depois, pela noite fora, ainda fizemos inúmeros lançamentos da varanda do nosso quarto para os pátios do casario do Bairro das Colónias: Avantes e Militantes, comunicados à população, jornais e posters da CDE, tudo em rolos atados com cordéis (com uma batata dentro para pesarem mais). Foguetões de imprensa ilegal disparados para o espaço para que alguém a lesse e aproveitasse com aquela operação de limpeza. Os materiais clandestinos eram sagrados: evitávamos desperdiçar os que, pelo seu conteúdo e actualidade, constituíam um meio de informação acerca do que se estava a passar no país e nas colónias. A seguir fomos deitar-nos em paz. Paz, porém, efémera.
Ao alvorecer, tal como era prática deles, tocaram-nos à porta – e, exactamente à mesma hora, à porta de mais uma dúzia de antifascistas em Lisboa. Em nossa casa, quase em simultâneo, o telefone começou a tocar ininterruptamente: eram jornalistas e familiares de amigos (que também haviam sido presos), querendo avisar-nos da vaga de prisões. A notícia estava a chegar aos jornais. Para nós era tarde. Já nos tinham entrado pela casa dentro três agentes da PIDE/DGS e um inspector. Este, logo à entrada, informou o Zé de que ia ser «detido para averiguações» – a fórmula do costume. Mandaram-no arran- jar-se com brevidade e, enquanto um deles se colou à porta, entreaberta, da casa de banho, os outros dois passaram a pente fino os quartos, a sala, a cozinha, tudo. Procuravam algo que o incriminasse. Em vão, que a operação de limpeza feita na véspera não deixara rasto
das actividades que desenvolvíamos. «Para fazer uma busca a sério aqui nem uma semana», dizia, desalentado, o agente Coelho.
O telefone não se calava. «Que ninguém responda! Bem sabemos que há muita gente a querer falar consigo», avisou um deles, um tal Bronze, enquanto folheava manuscritos, numa busca minuciosa dos trabalhos do historiador, acompanhada de comentários. Nem eu nem o Zé tivemos dúvidas do que, pela cidade, estaria a acontecer.
Finda a busca esmiuçada, começaram a atirar para o chão livros que retiravam das estantes: umas dezenas, seleccionados para apreensão, em grande parte, com base em critérios que evidenciavam a profunda ignorância daquela gente da PIDE/DGS. Poucos minutos depois, uns atapetavam a sala, outros acumulavam-se em pilhas. Enquanto a devassa decorria, os nossos filhos aguardavam por Abril. Ela, com 1 ano e meio, dormia, serena. Ele, com 3 anos, interrogava, inocente: «Estão a ler os nossos livros?»
No dia seguinte fiz 35 anos e reuni a família em casa, num jantar, a fazer de conta que a vida prosseguia. As crianças batiam palmas, contentes, soprando as velas do bolo de aniversário, e eu só ansiava pelo 25 de Abril... Assim mesmo: pelo dia 25 de Abril. Parecerá estranho, mas tem explicação: tinha-me sido marcada a primeira visita com ele para essa histórica quinta-feira.
Na véspera deitei-me ansiosa por que chegasse a manhã. Às 11 horas ia a Caxias vê-lo e levar-lhe roupas.
Pelas 4 da madrugada, o telefone tocou na sala e, em sobressalto, fui atender. Do outro lado, uma voz grave: «Venho informá-la de que estão em curso movimentações militares para derrubar o regime… Estamos a começar uma revolução e uma das primeiras coisas que vamos fazer é libertar o seu marido e todos os presos políticos.»
«Só me faltava este!», pensei e, sem dizer uma palavra, desliguei o telefone. «Provocadores!», resmunguei, enquanto regressava à cama. Pelas 6 horas acordaram-me outra vez, mas agora era alguém que reconheci a dar-me a notícia. O jornalista António Santos falava e, ao fundo, ouvia-se o barulho da rotativa do jornal.
Desde então e até à madrugada do dia 27 segui nas margens da revolução, sem testemunhar a sua componente popular. Horas e horas num sufoco, com o coração no fio da navalha.

Vi o telejornal do dia 25 em casa de um amigo que conhecia da Seara Nova e das CDE, o Alberto Pedroso. Hoje, passados todos estes anos, não me lembro de coisas que então julguei que iriam ficar dentro de mim até ao fim dos meus dias. Vividos em estados emocionais exacerbadíssimos e numa explosão de afectos, aqueles acontecimentos pareciam estar a ser inscritos de forma indelével na minha memória. É, pois, surpreendente que não tenha a menor ideia do que, à noite, vi na RTP e nem me lembre de uma grande parte do que fiz durante o dia. Ficaram-me retalhos: uma reunião dos familiares dos presos em Benfica (em casa do Fernando Correia e da Julieta), uma ida à rádio com a Aida Magro, a convite do Comando do MFA, para falarmos em representação das famílias, e o meu pai, ao meio-dia, no passeio em frente da casa da Encarnação, vestido de uma maneira inusitada – impossível de o imaginar – e numa exteriorização pública de sentimentos impensável na sua personalidade. Fui lá deixar os meus filhos, e ele, em pijama e com ar calmo, cansado de décadas sem liberdade – referindo-se à PIDE, ao governo e aos fascistas –, clamava para os vizinhos e a quem passava: «Eles têm de ser julgados num tribunal plenário. Não pode haver perdão para o que fizeram!» Talvez seja esta a imagem do dia 25 de Abril que retenho com maior precisão. O resto aparece-me formatado em sequências de «quadradinhos» dispersos, como se fosse uma banda desenhada desconstruída.
Por vezes, colo às recordações que guardo as imagens audiovisuais reproduzidas na comunicação social ao logo destes trinta e tal anos e deixo de ter o meu 25 de Abril para passar a ter outro, o que a história me vem ajudando a desenhar. Acontece-me dar comigo a responder a questões colocadas por jovens nas escolas, ou por amigos, acerca de acontecimentos que eu mesma vivi no dia da revolução, usando informação colhida em documentários transmitidos actualmente pelas televisões, e não, como seria natural, recorrendo ao testemunho pessoal, na sua pureza. Aparente pureza – talvez este fosse realmente o menos objectivo, já que entretecido pelas emoções da revolução com as naturais «revoluções» da minha memória.
Muito diferente é, na verdade, o que me sucede com a memória
da noite de 25 para 26, essa parecendo-me infinitamente precisa
tenho a sensação de que nada se perdeu, nada foi acrescentado, nada do que vivi me foi adulterado.
O estertor do regime revelou-se particularmente difícil para os presos políticos, sobretudo para aqueles, homens e mulheres, que se encontravam em Caxias. Começaram por desconhecer a natureza das movimentações de que se davam conta, admitindo tratar-se de um golpe da extrema-direita. Depois foram horas e horas de espera, de angústia, que partilhámos com eles, porque lha adivinhámos, minuto a minuto. No exterior do forte, nós, as famílias, tínhamos a informação de que estavam a decorrer cuidadas negociações e conhecíamos o risco de os “pides” ou os guardas prisionais, antes de se entregarem, poderem abrir fogo contra os presos. Pouco terá ficado registado, gravado, filmado, impresso, acerca do desfiar das longas e dramáticas horas vividas por quem aguardava cá fora – sobretudo na proximidade da prisão. Na memória do grupo aí presente estarão, de certeza, esculpidos pedaços tenebrosos do princípio da revolução.
Soubemos mais tarde que, perante a hipótese de irem sendo libertados a conta-gotas, de acordo com um critério supostamente negociado, responderam: «Só saímos todos de uma vez, ao mesmo tempo!» Assim aconteceu. As portas da prisão de Caxias só se abriram a 27 de Abril de 1974.
Assisti, de longe, à saída. Tentei aproximar-me dele, mas não consegui. Nem sequer acenar-lhe. Percebi que nesse momento não me pertencia: havia uma multidão que o envolvia e um mundo de jornalistas que o entrevistavam. Vi-o entrar para um carro e avançar a custo por entre milhares de pessoas que o saudavam com a alegria própria das horas de libertação. Entretanto, eu, ali parada junto dos amigos, sentindo que os nossos corações batiam a compasso, aclamava todos os companheiros que iam saindo. Houve um jornalista que me deu o recado: «O Tengarrinha pediu-me para lhe dizer que vai ter a casa depois das reuniões que agora o esperam com o MFA e com a CDE.»
Para mim iam começar os belos e difíceis dias da revolução!"

(Com um agradecimento e um grande abraço à Helena Pato, autora que partilhou este extraordinário testemunho no Facebook)

1 comentário:

  1. E eu, na época com 21 anos, como vivi intensamente esses dias! Foram os dias mais felizes da minha vida. Hoje ando com um misto de raiva e tristeza porque aqueles que foram derrotados nesses dias nos estão a governar de novo e a destruir as nossas vidas!..

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