terça-feira, 14 de abril de 2015

Ecos de Galeano...


"O código moral do fim do milénio não nos condenou à injustiça mas, ao fracasso."

"Dos medos nascem as coragens. Os sonhos anunciam outra realidade possível, e os delírios, outra razão. Somos o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia."

"Hay un único lugar donde ayer y hoy se encuentran y se reconocen y se abrazan. Ese lugar es mañana"

EDUARDO GALEANO

 

sábado, 11 de abril de 2015

Da Explicação Etno-Poética... do Alentejo!


"Nunca vi um alentejano cantar sozinho com egoísmo de fonte.
Quando sente voos na garganta,
desce ao caminho
da solidão do seu monte,
e canta
em coro com a família do vizinho.

Não me parece pois necessária outra razão
- ou desejo
de arrancar o sol do chão
para explicar
a reforma agrária
no Alentejo.

É apenas uma certa maneira de cantar."

José Gomes Ferreira
in "Circunstâncias IV"

quinta-feira, 2 de abril de 2015

O Espírito da Páscoa - na etnografia do Professor Galopim de Carvalho

Hoje li uma narrativa lindíssima da autoria do Professor Galopim de Carvalho, cuja escrita transforma a etnografia em contos de encantar! Penso que não faço mal se a partilhar via "A Nossa Candeia"... porque, de certa forma, é o mais bonito conto de Páscoa que conheço!
 
 
"SEMANA SANTA


Comer o borrego pelas festas da Páscoa está ligado a tradições religiosas e culturais chegadas até nós, vindas de longe, no tempo e na distância. É ler a Bíblia e ver como este simpático animal, com este ou outros nomes, se liga à tradição judaico-cristã, não sendo difícil procurar-lhe raízes ainda mais antigas. No antigamente, sacrificava-se o anho no altar; hoje come-se o borrego em reunião de família, depois de passadas as trevas e a dor, todos os anos evocadas durante a Semana Santa.
Nos meus tempos de criança quem tinha posses matava o borrego em casa, no Sábado, logo pela manhã, a fim de que a carne do dito pudesse figurar na ementa do almoço desse dia, já festivo, depois de bem anunciadas as Aleluias, ao meio-dia, nos carrilhões da Sé, logo seguidas pelo repicar de todos os sinos de todas as igrejas da cidade e arredores.
Era a festa! Era o fim do luto!
Num desses anos, o nosso pai teve a ideia de fazer como algumas famílias da periferia da cidade que, vivendo os inconvenientes da vida do campo, sabiam aproveitar-lhe as poucas vantagens. Assim, muito antes da Páscoa, comprou um lindo borreguinho acabado de desmamar, que já se governava sozinho se o deixassem em campo com erva.
Nós tínhamos necessidade de o levar a pastar, “fora de portas”, no que nos disputávamos constantemente. Cada um queria para si o gosto de segurar da corda que o prendia à coleira, onde chocalhava um pequenino guizo de latão. Vê-lo saltar, correr com ele que, por fim, já nos seguia sem trela e vinha ao nosso chamamento, era uma alegria nunca vivida.
Passados os Ramos, as Endoenças e o Enterro do Senhor, na Sexta Feira de Paixão, seguia se, inexoravelmente, o dia do «sacrifício».
Das conversas do pai com a mãe, eu e os meus quatro irmãos (três rapazes e duas raparigas) sabíamos que o tio Manuel, irmão do pai e homem de todas as profissões, viria sábado, bem cedinho, ocupar-se da matança antes que a rapaziada acordasse. Nessa manhã, após uma noite de vigília dos mais velhos, que se revezaram em quartos para que não falhasse a alvorada, levantámo-nos bem mais cedo do que a mãe pensava e aguardávamos o momento de dar execução ao plano que havíamos traçado. Entretanto, nos dias que antecederam aquele Sábado, tínhamos exercido intensa actividade de sensibilização da mãe, onde sabíamos estar a última palavra no desfecho do drama, chamando-lhe a atenção para a graciosidade do bicho, levando-a a acariciá-lo, redobrando, para que visse, as nossas atenções e brincadeiras com ele.
Visivelmente aflita, a mãe já não sabia o que fazer, dividida, por um lado, entre o nosso amor pelo animalzinho e a simpatia que, também ela, já nutria por ele e, por outro, dar de comer a uma família que já não era pequena. Quando, no Sábado, o tio chegou, a mãe, de olhos inchados e vermelhos, já estava no quintal com os alguidares e os preparos necessários. O tio trazia a navalha, bem afiada e bicuda. Num canto, o “mé mé”, branco de algodão, preso à trela, balia como que chamando a si a atenção da mãe que, roída por dentro de remorsos antecipados, evitava olhá-lo.
- Vá, Manuel, despache lá isso, depressa!
De rompante, invadimos o quintal e berrando uns, chorando outros, rodeámos o animalzinho com tanta determinação que não houve quem tentasse, sequer, tirá-lo das nossas mãos. A mãe, mentalizada de há muito pela nossa acção, foi a primeira a ceder, mais aliviada do que contrariada. Afinal, também ela não queria o sacrifício do animalzinho e percebera a tempo o que essa violência representaria para nós. O tio, completamente alheio ao drama, aceitou mal aquela mudança de última hora, não prevista e, sobretudo, o que mais lhe desagradou foi perder aquela pele branquinha que lhe renderia uns tostões. Saiu resmungando, indignado com a cena de insubordinação.
O pai foi o último a saber do resultado do confronto. Quando apareceu no campo da refega, a batalha estava decidida e não seria ele a pegar na faca. Não havia vencidos!
Havia Aleluia para nós, para os pais, de aliviados que ficaram e, também, claro, para o bicho.
Da carne de um borrego qualquer, que nunca havíamos conhecido, comprada no talho do Patinhas e passada que foi a tensão vivida, com que apetite comemos e que bem que nos souberam aquelas costeletas fritas com alho, aquele ensopado e aquele maravilhoso assado no Domingo de Páscoa!
O borreguinho, acabámos por conceder, levou-o o senhor Domingos, o marido da nossa lavadeira, depois de nos prometer, solene, libertá-lo entre os outros que pastavam lá no monte onde viviam e não consentir que ninguém o levasse. – Nunca!
De vez em quando perguntávamos-lhe por ele.
- Está lindo e mais crescido! – Respondia sempre.
– Quando é que vamos ao monte do senhor Domingos ver o nosso amigo? – Perguntávamos ao pai, vezes sem conto.
- Um dia destes! – Era invariável a resposta.
O tempo encarregou-se de diluir a nossa preocupação e de nos confrontar com a realidade que também nos ensinou a aceitar.
Este episódio, tantas vezes contado em sucessivas Páscoas, reunida a família em torno da mesa com a assadeira de barro ao centro, fumegante, perfumada e apetitosa, sofreu, ao longo dos anos, retoques de todos nós, já crescidos, dando-lhe as cores que cada um tomou para si. Porém, no essencial, foi isto que aconteceu, há quase oitenta anos. Claro que nunca soubemos o destino deste nosso companheiro, embora não seja difícil imaginá-lo.
Para mim, há sempre num monte do Alentejo um borreguinho branco e saltitante, em todas as Primaveras, a perpetuar-lhe a imagem."
 
Observação: A autoria do texto é do Professor Doutor António Galopim de Carvalho e a escolha da imagem também.

Da Paz que se Respira...

... nas paisagens, nos sorrisos e nesse extraordinário mundo onde a harmonia entre natureza e cultura não foi ainda tão adulterada como neste Ocidente onde a resiliência foi desaparecendo, substituída pela criação intencional de um consumismo que nos afasta, sob as mais diferentes formas, do melhor que somos ou podemos ser - retirando-nos a experiência natural da paz que, em esforço!, os cidadãos cansados, artificialmente procuram e têm que pagar.